Artigo: “Ética Profissional, Razão e Tradição”, por Napoleão Ferreira
20 de setembro de 2022 |
A discussão sobre a conduta ética nunca chega a conclusões absolutas. Kant dizia que um imperativo categórico, isto é, aquilo a ser seguido incondicionalmente, do ponto de vista ético, seria sempre dizer a “verdade”. Outros filósofos da atualidade, como Habermas e Appel, contrapuseram que, às vezes, seria ético mentir para salvar vidas.
A Lei 12.378/2010 impôs aos arquitetos e urbanistas brasileiros a obrigatoriedade de um código de ética e disciplina deontológico. Esse Código, ao encargo do CAU/BR, prescreve as condutas consideradas razoáveis para o pleno desempenho de nossas atividades profissionais.
O Código de Ética e Disciplina do CAU/BR é uma elaboração histórica. Suas normas são mutáveis, a partir do entendimento da autoridade constituída que é o Conselho. As possíveis alterações do Código, contudo, devem ser resultado de reflexões sensatas e responsáveis, caso contrário, a tendência será a desorganização e o risco à própria regulamentação profissional.
Quando se trata de conduta ética, a função orientativa do Conselho deve ter precedência sobre as ações punitivas, para evitar que se instale uma tendência persecutória no CAU, que comprometa a devida imparcialidade ou descambe para um mecanismo espúrio que possa ser usado nas disputas políticas profissionais, entre grupos rivais de colegas.
Ética e política profissional estarão sempre juntas, e a harmonização entre ambas será sempre fundamental para a afirmação da Arquitetura e Urbanismo para além das nossas fronteiras corporativas. A credibilidade e o reconhecimento público de nossa profissão devem ser, sempre, as referências das ações do CAU perante a comunidade nacional.
Esse propósito exige que façamos a distinção entre Ética e Moral. A Ética está relacionada à razão; a Moral se relaciona à tradição, em todo contexto civilizatório. A Ética decorre da discussão filosófica, desde a Antiguidade Clássica, abstraindo-se de seu debate componentes do campo do sagrado ou do sobrenatural. A Ética é um esforço racional para estabelecer padrões de conduta convenientes ao desenvolvimento das diversas atividades humanas. Assim, o que é ético é o que é razoável – e para cada campo de atuação, aplicam-se preceitos éticos específicos.
Dessa forma, inexiste uma ética na arquitetura e sim uma Ética da Arquitetura. A diferença entre essas duas preposições condiciona a compreensão necessária de que a ética profissional, embora possua valores transcendentais, só pode ser seguida se se considerar as características específicas de seu respectivo campo sócio-histórico. A Ética é relativa e se estrutura através de preceitos considerados razoáveis e de argumentos reflexivos sobre a conduta coerente aos meios sociais, mais ou menos abrangentes .
Quanto à Moral, podemos dizer que ela se compõe de normas de valores subjetivos, construídas pela tradição, que estabelecem as interdições de costumes e a postura esperada para cada indivíduo, conforme a estratificação social. Crime e pecado, por exemplo, são categorias pertencentes à História da Moral. Os valores morais extrapolam a razoabilidade e mudam, ou são superados, com a mudança dos costumes.
Para um dos fundadores da Sociologia, Emile Durkheim, a pena aplicada ao infrator penal nem de longe existe para reformar o caráter do apenado. A expiação por esse tipo de castigo teria por objetivo reforçar o código moral como crença coletiva, na comunidade que o aplica. Essa crença comum em valores subjetivos, considerados inquestionáveis, é o que Durkheim classificou como “solidariedade mecânica”, fato social que impõe o agir sem pensar em determinadas circunstâncias.
A partir de uma visão panorâmica, podemos considerar que, enquanto a Moral em essência é punitiva, a Ética possui caráter orientador. A Moral busca eternizar os seus preceitos; para a Ética é imprescindível o debate de ideias, a reflexão razoável e a avaliação de suas decorrências. Cabe à argumentação ética prescindir de juízos emocionais, rancores e apoios metafísicos ou teológicos .
Penso serem esses os critérios para abordarmos no campo do Conselho de Arquitetura e Urbanismo qualquer discussão sobre conduta ético-profissional. A indignação, às vezes, e a disputa política, sempre, podem comprometer decisões sobre critérios éticos da conduta profissional e ações para que as normas éticas se naturalizem no cotidiano da profissão.
O CAU/BR avançou muito em relação à condução de processos éticos. Destaco aqui o instrumento da conciliação entre as partes litigantes, quando existem denunciante e denunciado em um determinado processo em que ao Conselho cabe exclusivamente julgar a demanda. Mas o princípio razoável da conciliação não se aplica quando o CAU é o próprio denunciante; quando age de ofício .
A legislação brasileira prevê um dispositivo semelhante à conciliação em denúncias de ofício, para os entes públicos. No parágrafo 6º do artigo 5º da Lei 7.347, ficou estabelecida a possibilidade do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) como instrumento de conciliação que poderia satisfatoriamente ser utilizado pelo CAU em casos de denúncias éticas de ofício. O TAC pode ser um instrumento razoável para evitar que o Conselho venha a assumir um caráter de “ Inquisição” contra qualquer profissional registrado.
Um caso genérico em que poderia plenamente ser aplicado o Termo de Ajuste de Conduta é o de infração à Regra 3.2.16 do Código de Ética e Disciplina do CAU/BR. Como um profissional sem mandato no Conselho, seria descabido que eu entrasse aqui na discussão sobre o mérito de existir a referida Regra. Sobre isso, a discussão se desenvolve nas instâncias deliberativas do Sistema CAU. É de muita valia a este debate a publicação “Comentários ao Código de Ética e Disciplina do CAU/BR”, de autoria do colega João Honório de Mello.
Minha contribuição aqui se limita a propor a busca de argumentos razoáveis para que se evite decisões, a respeito da conduta ética profissional esperada, que resvalem para a planície do moralismo instrumental – incompatível com a consolidação da Arquitetura e Urbanismo no adverso mercado de trabalho e com o ainda incipiente reconhecimento de nossa profissão pela comunidade nacional.
Será sempre preciso evitar que nosso juízo ético se dilua no fluido universo da moral vigente. Cabem sempre reflexões sobre o contexto cultural brasileiro e sua tradicional manipulação de valores morais, com o intuito hipócrita de perseguir ou punir, exclusivamente, todo tipo de adversário.
Será sempre temeroso que a tendência ao discurso moral interfira nas decisões do Conselho referentes à ética profissional. Afinal, vivemos em um país onde há muito a ser feito no sentido de superar a hipocrisia como cultura moral predominante. Nossa cultura política chega ao disparate em que a troca de acusações verídicas de corrupção por duas candidaturas à presidência da república apenas mobiliza, na consciência de parte considerável do eleitorado, uma espécie de indignação seletiva, mediante as respectivas simpatias por um ou pelo outro concorrente.
A consciência das limitações da tradição nacional, das dificuldades socioeconômicas que atingem também a nossa comunidade profissional, e de que o desenvolvimento de nossa ética profissional será sempre parte de um esforço coletivo para a valorização e reconhecimento público da Arquitetura e Urbanismo.
Os problemas de conduta ética profissional não podem ser considerados como casos isolados e fora do contexto das contradições sociais mais amplas. O debate sobre a interdição da RT precisa estar contextualizado no adverso mercado de trabalho e remuneração da atividade profissional. Convém discutir alternativas que superem a crescente desvalorização da Arquitetura e Urbanismo, e, por consequência, do poder aquisitivo médio dos arquitetos e urbanistas. Cabe ao CAU apoiar e interferir politicamente no mercado profissional, promovendo a competência da profissão e buscando soluções coletivas que garantam a remuneração compatível com um patamar econômico digno e coerente com a otimização do desempenho da profissão.
Por fim, o apelo à conciliação – aos Termos de Ajuste de Conduta como soluções de demandas ético-profissionais – significa compreendermos em toda a complexidade histórica, e tolerância necessária, o ambiente social em que nosso projeto de desenvolvimento da Arquitetura e Urbanismo deve convergir para um projeto nacional mais amplo, que supere o atraso, a desigualdade e a baixa autoestima atávica vigente na nacionalidade brasileira.
Napoleão Ferreira da Silva Neto, Arquiteto e Urbanista
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