Artigo: “Evoé e o direito à cidade”, por Roberto Salomão
15 de fevereiro de 2023 |
O carnaval voltou! Foram dois anos sem a mais popular festa dos brasileiros, aquela que deixa foliões inebriados e as cidades transformadas. Justo por esse momento de deslumbramento, nos cabe questionar: o que o famoso grito das bacantes da antiga Grécia tem a ver com o “direito à cidade” e o carnaval? Vamos tentar responder.
Em 1864, quando Castro Alves tinha 17 anos, e estudava na Faculdade de Direito no Recife, cidade em que viveu grande parte da sua vida, ele escreveu um dos seus poemas mais vibrantes – “O povo ao poder” – em manifestação contra a repressão policial em um comício e a prisão do jornalista paraibano Antônio Borges da Fonseca. Falando, assim talvez você não se lembre muito bem desse poema, mas certamente vai se lembrar de uma de suas estrofes mais famosas, sobretudo na voz de Caetano Veloso, no carnaval da Bahia, ao parafrasear essa estrofe no seu “Um Frevo Novo”: “A praça! A praça é do povo / Como o céu é do condor”.
Um pouco mais de um século depois dessa eloquente afirmativa, mais precisamente em 1968, o filósofo e sociólogo francês, Henri Lefebvre, cunhou a expressão “direito à cidade”. Importante lembrar que esse ano ficou marcado pelo movimento iniciado pelas juventudes engajadas na luta pelos direitos civis. Lefebvre estava, então, completamente sensível às vozes que irrompiam nas ruas, percebendo que as cidades haviam se convertido no lócus de reprodução das relações sociais, onde a rua, mais do que apenas um lugar para movimento e circulação “é onde o movimento acontece, a interação sem a qual a vida urbana não existiria”.
No sentido mais amplo, o Direito à Cidade pode ser entendido como um direito humano e coletivo, que diz respeito tanto a quem nela vive hoje quanto às futuras gerações. Constitui-se, portanto, num compromisso ao mesmo tempo ético e político de defesa de um bem comum essencial a uma vida plena e digna. Fazer uma festa na praça ou colocar o bloco de carnaval na rua, ocupar e usufruir do espaço dessa praça, dessa rua, tudo isso é Direito à Cidade!
Mais recentemente, em seu livro “A arquitetura da felicidade”, o filósofo suíço Alain de Botton diz que a arquitetura – e aí tomo a liberdade de extrapolar esse conceito do edifício isolado para a “arquitetura da cidade”, não nos proporciona apenas refúgio físico, mas também psicológico. Ela atua como uma espécie de guardiã de nossa identidade, uma vez que a nossa identidade está intrinsecamente associada ao lugar em que vivemos, e que junto com ele nossa identidade se transforma. Por isso mesmo, seja no carnaval ou no nosso cotidiano, precisamos guardar, zelar por esse nosso lugar.
Queiramos ou não, somos, em geral, “pessoas diferentes” quando em outros lugares: quantas vezes, quando estamos fora de nossa cidade, de nosso lugar, sobretudo em cidades muito diferentes da nossa, agimos de forma diferente daquela que estamos acostumados a fazer e a ter em relação a nossa cidade como, por exemplo, caminhar, apreciar a arquitetura e a paisagem, usar os mais diferentes modais de transportes, respeitar as regras de uso dos espaços livres etc. Essa é, em grande medida, a principal premissa para acreditarmos na importância da arquitetura e na sua função de “esclarecer” quem poderíamos ser, sobretudo, enquanto cidadãos e citadinos ideais. Por isso mesmo, é preciso repensar nossa relação com a nossa cidade. Não faz muito sentido sermos “cidadãos ideais” apenas quando estamos fora de nossa cidade.
Atuar de forma objetiva sobre os espaços livres (ruas, praças, largos etc.) da cidade pode sim nos tornar pessoas ou cidadãos melhores. Por sua vez, estamos prestes a viver um dos mais esperados carnavais do século. Um carnaval que promete ser inesquecível, por tudo o que se represou de sentimentos em decorrência da pandemia da COVID-19. Um carnaval que promete ser uma grande oportunidade para se resgatar, (re)ocupar e (re)usufruir do espaço da cidade, de seus espaços livres e, sobretudo, uma oportunidade de resgatar nossa identidade enquanto recifenses, olindenses, caruaruenses, triunfenses, petrolinenses. Mas não esqueçamos, mesmo no carnaval, é preciso guardar o “olhar sobre a cidade”, é preciso tratá-la com afeto, pois na nossa cidade “não se bate nem com uma flor”. Sejamos bacantes, mas sejamos gentis com nossa cidade! Evoé!!! Bom carnaval para todos!
Roberto Salomão
Arquiteto e Urbanista
Conselheiro federal (PE) do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil
@cons.roberto.salomao@caubr.gov.br
Essa publicação faz parte de um espaço cedido pelo CAU/MT para os profissionais submeterem artigos de opinião relacionados ao campo da arquitetura e urbanismo. O Conselho recebe artigos em fluxo contínuo e as publicações vão ao ar por ordem de recebimento. As informações aqui divulgadas não necessariamente representam a opinião da instituição e a responsabilidade sob qualquer informação divulgada é do autor da mensagem. Para mais informações sobre como submeter seu artigo de opinião, clique aqui.